Nos últimos dias ela andava completamente atordoada. Não sabia se eram as marteladas da reforma no escritório, ou a menopausa precoce. Um calor, uma vontade de gritar. Um frio, queria bater a porta e chorar escondida.Chegava em casa e jogava a bolsa no sofá – era como se saísse poeira dos pés. Ia direto ao banheiro. Não mijava, não lavava o rosto, se olhava no espelho. Ficava observando as olheiras, a expressão cansada, a pele gordurenta. Seu nome, Francisca. A mulher que não planejava nada. Que sentava em cima das pernas e ficava por horas observando a parede verde do seu quarto. Não queria namorar porque suava. Não queria dormir porque doía a cabeça. Não queria estar onde estava, mas não queria mover a bunda pra nenhum lugar.
A aflição desta mulherzinha não era algo palpável. A vida lhe era boa, colorida e estável. Os amigos presentes, as pernas encelulitadas de comida - nunca fora tanta fartura. Mas é que ela sentia isso, de vez em vez, ou quase sempre - na verdade. Não conseguia desligar-se da mania de entender o que se passava ao seu redor. A menos, quando enchia a cara. Então não, Francisca, ficava leve, frouxa. Quando encontrava Mariano – depois de umas (cervejas, vodka com laranja), ela era todo amores. Sem falação barata, sem “ai que dia hoje não?”, era vem pra cá meu benzinho e vapiti vupiti. Mariano já estava morto no chão. E assim eram os dias de Francisca. Rainha da compreensão humana. - Oh Francisca, vê se te manca e vai apenas viver a vida, molhar as flores e inventar algo mais bem humorado pra dizer na janta!Um amigo aparecia lá pelas tantas. Era dor de cotovelo. Ela ouvia como uma mestra do entendimento humano que era. Dizia que a vida é assim mesmo. – O que não tem remédio, remediado está. Te acumóda! O amigo se embebia de coisas que estava querendo escutar. A grande sacada de Francisca era dizer o que as pessoas gostavam de ouvir. Poderia ser vendedora, mas não lidava bem com números. Então destilava todo o Ensinamento de Buda (Editora tal, capítulo treze). Confortava-se em confortar. O amigo ia embora, deixava uma ponta, e Francisca voltava a sentir todo o desassossego do mundo dentro do seu quarto. As horas passavam rápidas demais, derramava café na cozinha, arrumava tudo e derramava de novo. Atordoada que estava. Fumava a ponta enquanto Mariano não aparecia.
Francisca não queria mais torrar o saco de ninguém com suas coisas. Nada tinha pra acontecer efetivamente, só uma noite qualquer. Francisca então colocava amaciante na carne, fazia suco de hortelã e talvez, quem sabe, conseguisse chegar mais perto de ser o que tanto queria – um lago sereno no meio de um bosque de árvores frondosas. Amava palavras doces como estas. A palavra mais linda da língua portuguesa – desassossego. Uma prece para o desassossego ir embora e deixar Francisca no seu bosque, com Mariano, com sua celulite, com seus conselhos inúteis.
Mariano já sabia, era o dia da transformação daquela semana. Ele adorava esse dia - um por semana, toda a semana, igualzinho todo o mês. Já notava pelos ares, pela música, pelos olhos inchados disfarçados de corretivo, do arzinho de normal por trás dos ombros tensos. Mas ele pensava “Ah Francisquinha, vale a tentativa! Te amo todos os dias, e nesse dia especialmente, quando queres ser outra pessoa, renegando tudo que és. Te amo minha desassossegada mulher.”
Ele comia tudo e depois comentava o tempero- igual toda semana- mas ela nem desconfiava, pois era o seu novo dia, sua decisão de amar mais Mariano e ser um lago sereno no meio de um bosque de árvores frondosas. Desligava as luzes e dormia... com Mariano, seu sono justo de Francisca. 